sábado, 21 de dezembro de 2013

LEMBRANDO O NAUFRÁGIO DA TRAINEIRA “GRAÇA DE DEUS” À SAIDA DA BARRA DE AVEIRO

 A desditosa traineira GRAÇA DE DEUS

 A traineira GRAÇA DE DEUS numa das suas marés no canal Central da ria de Aveiro

 O malogrado mestre António Paulo a bordo da sua traineira

Despojos da traineira GRAÇA DE DEUS arrojados à costa

13/11/1955 – Morreram afogados dezasseis tripulantes da traineira GRAÇA DE DEUS, da praça de Peniche, que naufragou á saída da barra de Aveiro, onde fora vender o peixe pescado durante a noite anterior.
Grande tragédia voltou a cobrir de dor e de luto alguns centros piscatórios do país que acabam de perder dezasseis dos seus humildes filhos, que confiadamente, tinham partido, na terça-feira da semana finda, de Peniche, para a pesca, a bordo da traineira GRAÇA DE DEUS. De novo os gritos lancinantes de desespero e de sofrimento das famílias e amigos dos desditosos náufragos ecoaram nesses centros mal se soube do trágico naufrágio.
Mal as famílias dos náufragos de Peniche, não ouvindo, nos seus aparelhos de rádio, as notícias que a embarcação costumava transmitir, todas as manhãs, às 7 horas, tiveram o pressentimento, de que alguma desgraça ocorrera, dirigiram-se com os corações dilacerados para a praia e à Casa dos Pescadores, na esperança de verem desfeitas as suas angústias.
Infelizmente, os pedidos de socorro lançados pela traineira BEIRA NOVA e captados nos aparelhos de rádio de alguns dos familiares dos tripulantes da GRAÇA DE DEUS confirmavam o drama que, às 7,45 horas, acabava de se registar, no paredão da Meia-Laranja, no extremo da barra de Aveiro, porto que a GRAÇA DE DEUS demandara, anteontem, a fim de reparar as redes e vender os quarenta cabazes de peixe que tinham sido pescados. A tragédia, contudo só algumas horas mais tarde era conhecida com toda a sua pungente realidade.
De Aveiro, e pela radiotelefonia, era comunicada, oficialmente, ao capitão do porto de Peniche, o dramático naufrágio e, embora sob reservas, todos os tripulantes da embarcação eram dados como desaparecidos. Ignorava-se ao certo, o número de mortos, pois ainda se desconhecia que tinham ficado em Peniche, por motivo de doença, os tripulantes José Cativo, de 47 anos, casado, de Vila do Bispo; e José Luis Pereira, o “Gaivino”, de 26 anos, casado, daquela vila, que assim salvaram a vida. Contudo, a notícia da tragédia ia alastrando a todos os centros piscatórios do país, causando a maior emoção, pelo elevado número de vítimas que nela perderam a vida. Mas onde ele se sentiu, com todo o peso da sua dor e luta, foi em Peniche, praça da traineira naufragada e onde residiam o mestre, o contramestre, o motorista e três dos seus tripulantes. Dos restantes náufragos, dois eram de Setúbal, três da Quarteira, dois de Vila do Bispo, e os três restantes, de Lisboa, Lagos, Buarcos e Figueira da Foz.
APESAR DE IÇADO O SINAL DE MAU TEMPO. NA TORRE FO FORTE DE AVEIRO, ALGUNS MESTRES TEIMARAM EM SAOR DO PORTO, E FOI ESSA TEIMOSIA A CAUSA DA TRAGÉDIA
Como dissemos a GRAÇA DE DEUS, que pertencia à Sociedade de Pesca Graça de Deus, com sede em Peniche, e que tinha como mestre António Paulo Júnior, o “Sardinha Aringa”, que também era sócio daquela empresa, demandara a barra de Aveiro, anteontem e fundeara no canal Central, a fim de vender o peixe que pescara, como era costume.
Com aquela embarcação, fundearam também, no ancoradouro, das Pirâmides, a BEIRA NOVA, VENTUROSA, DUAS FILHAS e a ESTRELA DO MAR, todas da Praça de Peniche, e a ERRA, de Matosinhos.
Vendido o peixe. Os mestres das traineiras prepararam as embarcações para, na madrugada seguinte, se fazerem ao mar. Alguns marítimos mais velhos, aconselharam-nos a aguardar por melhor tempo, pois o mar estava muito agitado devido à violenta nortada, e, na Torre do Forte, conservava-se içado e iluminado, durante toda a noite, o sinal de mau tempo.
Mas ao dealbar, os preparativos de partida entraram em grande azáfama e, cerca das 6 horas, o mestre da traineira ERRA largava do ancoradouro da Pirâmides para a saída da barra, embora o mar se mantivesse bastante agitado. Os mestres das outras traineiras, imprevidentemente, seguiram-lhe o exemplo e a BEIRA NOVA e a GRAÇA DE DEUS foram no seu encalce, a pouca distancia umas das outras. A ERRA já na linha do “cabeço” dos molhes, manobrou com grande risco, mas conseguiu, felizmente, romper as vagas alterosas e pôr-se ao largo.
Mas já a BEIRA NOVA não foi capaz de vencer a força da rebentação e desistiu de prosseguir viagem, regressando no momento em que a GRAÇA DE DEUS tentava galgar um dos vagalhões, que vinha desfazer-se na proa da traineira.
Foi, então, que uma volta de mar mais violenta a sacudiu e uma vaga lhe inundou a ré.
O mestre da traineira, segundo declarações do faroleiro Joaquim Augusto Rosa que assistiu, do farol da barra de Aveiro, a todo o drama, e o mestre da traineira BEIRA NOVA, Joaquim Mamede Cardoso, devia ter obrigado, nesse momento, os tripulantes a descerem aos seus beliches e a fecharem os escantilhões, para evitar que as vagas, que varriam o convés, os encharcasse, ficando ele com o contramestre João de Jesus e mais dois moços de convés.
Entretanto, novo vagalhão galgou a traineira que, já meio submersa, se voltou, afundando-se em poucos minutos, com toda a sua companha.
A BEIRA NOVA lançou então um SOS aflitivo para as embarcações que estavam mais próximas, pedido de socorro que algumas famílias dos tripulantes que costumavam, em Peniche, ouvir as comunicações lançadas pontualmente, todas as manhãs, de bordo da GRAÇA DE DEUS, captaram nos seus aparelhos de fonia e que lhes deu a triste noticia do trágico acontecimento, como já dissemos.
Impossível se tornava prestar socorros aos náufragos.
A GRAÇA DE DEUS afundara-se e as traineiras VENTUROSA, DUAS FILHAS, e ESTRELA DO MAR que, juntamente, com a BEIRA NOVA tinham desistido de se fazer ao mar regressaram aos ancoradouros, nada puderam fazer.
AVIÕES DA BASE DE SÃO JACINTO SOBREVOARAM O LOCAL DA TRAGÉDIA, NA VÂ ESPERANÇA DE ENCONTRAR NAUFRAGOS
Muitas traineiras que navegavam próximo da costa de Aveiro, algumas das quais da praça de Matosinhos, acorreram aos pedidos de socorro, mas também nada puderam fazer.
A GRAÇA DE DEUS de quilha para o ar, servia de túmulo a todos os seus valorosos tripulantes.
Rapidamente o drama marítimo era conhecido em Aveiro e centenas de pessoas se deslocaram para o local da tragédia que, então, começou a ser sobrevoado por alguns aviões da base de São jacinto.
Durante largo tempo esses aparelhos pesquisaram o oceano, numa larga área, lançando no ponto onde se registara o naufrágio, algumas boias e barcos de borracha na esperança que se houvesse sobreviventes estes poderiam servir-se daqueles meios para salvarem as suas vidas,
Mas tudo foi inútil. Apesar das pesquisas, nem um náufrago foi visto, e, só algumas horas depois, é que começaram a ser dados à costa, nas praias de Mira e da Costa Nova, alguns destroços da traineira e apetrechos de pesca.
A comoção das centenas de pessoas que assistiram a estes esforços para localizar os náufragos foi enorme e alastrou-se a toda cidade de Aveiro.
A Impressão geral, dolorosa e pungente, foi a de que, dos dezasseis tripulantes, treze tinham morrido asfixiados nos beliches, sem terem tempo de abrir as escotilhas.
O mestre e o contramestre e um dos moços não puderam utilizar-se dos cintos de salvação, ficando debaixo da traineira, quando esta se voltou.
CENAS LANCINANTES SE REGISTARAM, EM AVEIRO, ENTRE AS FAMILIAS DAS VITIMAS QUE ALI FORAM TRANSPORTADAS EM AUTOMÓVEIS, DE PENICHE
A tragédia que enlutou a classe piscatória de todo o País, foi profundamente sentida em Aveiro e todos os barcos fundeados naquele porto colocaram a bandeira nacional a meia haste, em sinal de luto, e os organismos oficiais de pesca enviaram, de Lisboa, como seu representante, àquela cidade, o Sr. António Cruz, a fim de este funcionário tomar as necessárias providencias para que às famílias dos náufragos seja prestada a indispensável assistência moral e material.
Entretanto, as autoridades marítimas de Peniche tomaram, também a iniciativa de transportar algumas das famílias das desditosas vítimas à Gafanha da Nazaré, onde se registaram cenas lancinantes, ao confirmar-se que nem um dos tripulantes da GRAÇA DE DEUS se salvara, cortando assim toda a esperança que os corações daquelas famílias ainda albergavam.
A LISTA DA VITIMAS
Como o registo da capitania de Aveiro dava como sendo de vinte e cinco o número de tripulantes da GRAÇA DE DEUS, estabeleceu-se nas primeiras horas, uma certa confusão quanto ao número exacto de náufragos.
António Paulo Júnior, de 51 anos, mestre; João de Jesus, de 25 anos, contramestre; Belarmino Matos Figueiredo, de 24 anos, motorista; e os pescadores Jacinto dos Santos Nunes, de 39 anos, António Encarnação Mamede, de 19 anos, e João Matoso Xavier, todos residentes em Peniche; e Paulo da Graça Quitério e Gelásio Dias, ambos de Setúbal; Manuel Guerreiro Nunes, Francisco Renda Correia e João dos Ramos Deus, todos da Quarteira; José Simão Sintra e António Fernandes, ambos de Vila do Bispo; António Maria Pata, de Buarcos; José António Santos, de Lisboa; e João da Luz Lopes, de Lagos.
À hora do jornal entrar na máquina, ainda não tinha dado à costa o corpo de nenhum dos desventurados náufragos.
As autoridades Aveirenses compareceram no local da tragédia e os organismos de pesca daquela cidade também puseram a bandeira a meia haste, em sinal de pesar.
Resta acrescentar que a traineira GRAÇA DE DEUS foi construida em 1947 por António Gomes Martins, no seu estaleiro de Vila do Conde, e tinha de comprimento ff cerca 15m.
O corpo do seu desditoso mestre, sr. António Paulo, o Sardinha Arinca, deu à costa de Buarcos, no dia seguinte ao naufrágio.  
Fonte e imagens: Jornal O Comércio do Porto.
Rui Amaro  
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