segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

«UM SAPATEIRO TORNOU-SE “PRIMEIRA LINHA” DA PESCA DO BACALHAU DEVIDO A UMA APOSTA ENTRE AMIGOS»

Boa pescaria parece ter tido este "homem dos dories" do lugre ARGUS, Jacinto da Costa Jr "Bexiga", dos Açores, que exibe, satisfeito, mais um bom exemplar de "fiel amigo" e pode muito bem ter sido o "primeira linha" do seu lugre. /gravura de reportagem de "O Comércio do Porto", década de 60/.


A Foz do Douro, também terra que foi de marítimos, desde pescadores a pilotos e capitães náuticos, na pesca do bacalhau dos Grandes Bancos da Terra Nova e Groenlândia não teve grande apetência, apesar da razoável frota da praça do Porto, e pode-se contar pelos dedos os poucos homens que fizeram dessa actividade a sua profissão. Recordo-me do Rodrigo, pescador e marinheiro do lugre “Aviz”, e mais tarde assalariado da Corporação de Pilotos da Barra e patrão do salva-vidas “Visconde de Lançada”, o Calisto e Seixas, pilotos de navios bacalhoeiros, um capitão e poucos mais.
Pois, por volta de 1900, um sapateiro de profissão, com banca própria de conserto de sapatos, embora não sendo marítimo, mas com experiência de pesca lúdica, na costa e na barra do rio Douro, nomeadamente do robalo e do congro, além de saber manobrar um simples bote a remos e à vela, experiencia que nós aqui da Foz do Douro, mais propriamente os da borda d’água, desde rapazitos fomos habituados, o que não acontece hoje em dia, com tanta fiscalização e coimas, tornou-se pescador de dóri.
Acontece que aquele sapateiro, julgo de apelido Leite, e ainda meu parente materno, após as horas do seu trabalho oficinal, na venda da esquina, no meio de um jogo de cartas da sueca e de uns copos entre amigos, puxa conversa disto e daquilo, vem à baila a pesca do bacalhau, e o nosso Leite exclama, que apesar de ser uma faina bastante dura e longa, não temia fazer uma só campanha, como pescador de dóri, e que seria um “primeira linha”. E, dito isso, aposta aceite!
Como era Abril e os dias da largada dos lugres estavam próximos, o Leite não perdeu tempo, e a pé da Foz a Massarelos, foi falar com capitães, a fim de oferecer os seus préstimos como pescador, tendo sido aceite num dos vários lugres e como residisse perto, ficou estabelecido começar a trabalhar a bordo nos preparativos finais do navio e no amanho da sua embarcação de trabalho, a partir do dia seguinte. Tendo o capitão tratado da sua cédula marítima, a fim de o matricular na capitania do Porto e inscrevê-lo no respectivo rol da equipagem do seu lugre.
Chegado o dia da grande travessia do Atlântico, manhã cedo, o futuro “primeira linha” despediu-se sob choros, abraços e desejos de boa sorte, dos familiares e amigos e dos seus rivais apostadores e lá seguiu, pela estrada ribeirinha da Foz até Massarelos de saco de lona ao ombro e um razoável búzio na mão, arranjado à ultima hora, peça essa que lhe viria ser muito útil, buzinando para assinalar a posição do seu dóri em ocasiões de nevoeiros, e como temente a Deus que era, não deixou de passar pela igreja paroquial para orar à Senhora dos Navegantes, rogando protecção para a tarefa, que ia empreender, que para ele era coisa nova. Ao passar junto das capelas da Sra. da Lapa, Cantareira, patrona dos mareantes, dos pilotos da barra e dos pescadores da Foz do Douro; do Senhor dos Navegantes, Sobreiras; Senhor e Senhora da Ajuda, Santa Catarina e Senhora dos Anjos, Lordelo do Ouro, e ainda chegando junto do seu navio, a Massarelos, foi à igreja local ajoelhar-se diante da imagem de S. Pedro Telmo, em todas fazendo as mesmas preces. Já de véspera numa bateira da Cantareira, de um amigo, trouxera vários utensílios para o seu dóri, que estivera a preparar e ainda um garrafão de verde tinto, só para ser aberto em ocasiões festivas e um outro de pura aguardente, para combater os frios polares, oferecido por amigos.
E a hora da partida chegou! Catraia dos pilotos atracada ao lugre e piloto da barra a bordo. O capitão ordena a quem não era de bordo para ir para terra. Dóris do lugre trazem o pessoal para a lingueta e bateiras da Afurada, localidade piscatória ribeirinha de onde era a maior parte da tripulação, ficam a pairar nas imediações com mulheres e filhos. Na margem, como sempre acontece, familiares dos pescadores da Póvoa e da Vila, e gentes de Massarelos habituadas aqueles cenários de há muitos anos, acenam desejando boa viagem, boa pesca e feliz regresso.
O piloto da barra manda largar cabos de terra e os homens vão para o molinete para suspender as amarras. O “Veloz”, um rebocador de pás, pega a amarreta à proa e começa a desandar o navio para rumar à barra. No ancoradouro há outro lugre do mesmo armador a preparar-se para largar. O lugre, já de velas içadas e retesadas vai aproveitando a nortada que se faz sentir, passa diante do cais dos Pilotos e da Meia Laranja, à barra, e o nosso sapateiro/pescador corresponde aos acenos dos familiares e amigos, que não se cansam de lhe acenar. Já fora da barra o piloto despede-se do capitão, da tripulação e particularmente do novo “Herói do Mar”, sendo recolhido pela catraia e pouco depois o “Veloz” deixa o lugre à sua sorte, despedindo-se com silvos da sua sirene e o lugre toma o rumo do Noroeste do Atlântico, e muito possivelmente, o Leite, começa a sentir os efeitos da ondulação e do enjoo, que ele jamais tinha experimentado, porém agora é aguentar até regressar por Agosto.
Meados de Agosto, o telegrafista da estação semafórica e telegráfica do Monte da Luz, Foz do Douro, assinala lugre de três mastros a Oeste, e passada uma hora reconhece ser o lugre do pescador Sanjoaneiro, que se vai aproximando da costa. Entretanto os pilotos são informados, e em pouco tempo toda a Freguesia da S. João da Foz do Douro, avisada de boca em boca, já se dirige para os cais próximos da barra, para assistir à entrada do lugre e para saudar o sapateiro Leite,
O lugre já está pilotado, e a reboque do vapor “Liberal” faz-se à barra, e diante do cais do Touro, os familiares e amigos lá vislumbram o pescador Leite, apoiado nas enxárcias, de gorro na mão, acenando para terra, juntamente com os seus camaradas, que também acenam aos seus, que de seguida acompanham por terra o lugre até à amarração de Massarelos, ladeado por bateiras vindas da Afurada, também com gentes dos pescadores daquela localidade.
O novo “Herói do Mar”, após as formalidades legais e ter recebido os seus ganhos, despede-se dos camaradas e particularmente do seu capitão, que o felicita pela sua proeza e lhe recomenda que para a próxima campanha irá contar com ele. Só que o Leite diz-lhe que não foi feito para ser marinheiro, tem a sua oficina de sapateiro com uma boa clientela, e só foi pela aposta que embarcara. O capitão replica-lhe, que caso ele não apareça a bordo a tempo das matrículas, que o irá buscar a casa, que não estará disposto a perder um “primeira linha” como ele!
Já em terra é abraçado pelos familiares e amigos, que o felicitam pelo feito e mais o ovacionam e elevam-no aos ombros, quando lhes diz que fora o “primeira linha” do seu lugre, o que possivelmente não deve ter agradado aos seus amigos apostadores, que tiveram de arcar com o valor da aposta. Há noite na venda contava aos amigos as aventuras, porque passara nas duras e perigosas lides da sua “Faina Maior”. Mais tarde, quando da chegada de toda a frota bacalhoeira do armamento Portuense, foi divulgado que ele fora o pescador que mais quintais de bacalhau capturara, pelo que foi considerado o seu “primeiro pescador”.
E chegada a nova campanha do bacalhau, o capitão foi mesmo buscá-lo a casa para essa e para mais duas, tendo em todas elas cometido a proeza de ter sido o “primeira linha” do lugre.
A história acima narrada, e que eu compus o mais veridicamente possível, fora-me contada por meu Pai e velhos conterrâneos, na minha infância.
Rui Amaro